((Música tema: Strangelove- Depeche Mode))
Acaricio tua pele morena de sol, a cabeça apoiada em meu colo e teus olhos, mesmo fechados entregues ao torpor do sono a me revelar mil mistérios. Teus lábios macios tão cheios de ternura e eu sinto as batidas de teu coração a me atingir de maneira estática através do seu corpo colado ao meu, a me aquecer noite adentro. Os sons da noite seriam enlouquecedores, não fosse sua respiração ritmada marcando o compasso do nosso tempo que mal sabia eu, não tínhamos.
Abriu os olhos e massageando as têmporas doloridas descobriu-se seminu, largado numa cama macia e enfiado em lençóis de seda fina. Estava confuso, em um lugar qualquer, perdido pela cidade cujas luzes noturnas ele via pela fresta de uma cortina vermelho sangue, que escondia parte da grande porta vítrea que levava até a sacada.
Lentamente, passou os olhos pelo lugar. Um quarto muito luxuoso e enfumaçado, decorado em vermelho profundo e madeira escura. Estava à meia luz, com velas espalhadas pelo local bastante bagunçado em que tudo, inclusive ele mesmo, cheirava à sexo, sangue, álcool e Gucci.
A cabeça latejava como se tentasse conter a ira de todos os círculos do Inferno, mas aos poucos ia tomando mais consciência da própria consciência. Movia-se devagar acostumando os músculos com os movimentos. No relógio, alta madrugada.
Levou um cigarro aos lábios, deu uma tragada funda engolindo a fumaça, e a soltando pelas narinas contemplou a silhueta encolhida sob os lençóis ao seu lado.
Passou levemente a mão pelo corpo pálido ao seu lado, estava nua. E linda, tão bonita que lhe feria os sentidos, parecia muito jovem.
Ao seu toque, moveu-se e devagarzinho se espreguiçou manhosa, e colocando-se sobre os joelhos dobrados revelando toda sua graça de mulher madura colocou nele os olhos de íris negras e anormalmente brilhantes, cravados no rosto magro de ossos proeminentes e lábios apagados, a tez se fazia muito pálida e era emoldurada por uma cascata que lhe caia lisa, brilhante e negra cobrindo parte dos seios nus. O encarava com uma expressão curiosa, quase inocente.
Ao seu toque, moveu-se e devagarzinho se espreguiçou manhosa, e colocando-se sobre os joelhos dobrados revelando toda sua graça de mulher madura colocou nele os olhos de íris negras e anormalmente brilhantes, cravados no rosto magro de ossos proeminentes e lábios apagados, a tez se fazia muito pálida e era emoldurada por uma cascata que lhe caia lisa, brilhante e negra cobrindo parte dos seios nus. O encarava com uma expressão curiosa, quase inocente.
-“O que há querido? Porque você não relaxa e descansa aqui comigo?”- Revelou uma voz macia e grave, mas de doçura quase infantil que lhe dava um ar ainda mais jovial.
-“Olha só, eu não tenho a menor ideia de onde eu estou e nem quem é você. Minha flor, alguma coisa aconteceu ontem a noite e eu não estou gostando por tanto...”-Insistia pacientemente tentando evitar a nudez daquela tão esquisita criatura.
-“Muitas coisas aconteceram. E eu sei muito bem o quanto você se divertiu. Confie em mim”-Interrompeu, irritando-lhe a mente confusa.
-“Você ao menos poderia se vestir?”-Escapuliu-lhe, afiado.
-“Você quer saber algo, não que? Tudo bem meu querido, pode falar...” –Uma resposta novamente doce enquanto recolocava o vestido preto curto, de mangas longas, fechado até o pescoço onde era enfeitado com uma gola clara que terminava num laçarote de cetim. Com efeito, mais parecia uma releitura moderna de alguma antiga mortalha podre. Aquilo não o agradava muito menos fazia seu tipo.
-“ Olha, realmente! Você está certa... Eu não me lembro de nada mas lembro que tem uma esposa a quem eu machuquei muito mas ainda me espera em casa então eu vou voltar e nem você e nem ninguém vai mais me levar a traí-la e.” –Buscava, quase indo às lágrimas se esquivar da figura esquelética que o encarava tão fervorosamente.
-“Pode ter certeza de que não foi preciso trazê-lo!” –Disse-lhe mordendo os lábios e se dirigindo para a garrafa de Vinho.
-“Não, olha, pouco me interessa tudo isso...Quando eu voltar pra casa vou parar com a bebedeira e dar um jeito em tudo e...”- Estava ficando nervoso.
-“Nós não estamos aqui por amor. Nem por paixão.”- Sentou-se numa poltrona bonita, numa mão a garrafa, na outra um cigarro. Ria-se da própria frase como se ela contivesse algo de insano e então prosseguiu.
-“Espera... eu não me lembro de outras noites contigo,” – Enfiava desesperado, os dedos entre os cabelos também negros e desgrenhados. –“eu não suporto isso, se a questão for dinheiro, tudo bem, só... Eu só estou indo embora ok.”
-“Eu não sou uma das suas putas de luxo. Descubra-me.”- Se divertia com aquilo como se fosse uma piada.
A afirmação escancarada congelou o homem na hora, que arregalou os olhos num frenesi repentino, mas logo voltou à posição confusa e derrotada.
-“Eu sei mais sobre você do que você imagina... Nós estamos a mais tempo juntos do que se lembra. E também não acho uma boa ideia que você volte pra casa. E a sua cabeça não vai explodir, vai lá, deve ter algo pras tuas dores na gaveta.”
Ele se levantou, engoliu um comprimido rápido e deixou o corpo cair numa cadeira de frente pra ela.
A mulher o encarava, devorando com seus olhos brilhantes, rindo da dor dele.
-“ Droga, eu preciso me recompor, eu... Eu...”- O homem voltava a ser uma criança assustada, tremendo os lábios, soluçava.-“Eu... preciso ir. Eu estou tão fodido. Eu joguei tudo fora...”
A mulher se aproximou lentamente dele e aproveitando da vulnerabilidade, o abraçou fortemente e passou-lhe a sussurrar sedutores mistérios que o machucavam, ao pé de seu ouvido seguro, fazendo seu corpo todo congelar.
-“Acalme-se querido, você me procurou como foi previsto... Só isso ok, só isso. Eu sei porque te assusto e porque você não se lembra... E daí vem o encanto. Olhos negros a devorar olhos negros. Agora você tem a mim, você protege o meu coração e eu o protegerei agora... ”
-“Não olha moça, que história mais maluca é essa? Eu não sei como você descobriu essas coisas ou como planejou tudo isso, mas sinto muito não ficarei mais um minuto aqui.”
-“Tem certeza???”- Disse ela caminhando para a sacada e acariciando o corrimão.
-“O que? Hey, volte aqui, a porta está trancada, você não pode me manter aqui”-Esbravejou ele, batendo frustrado na porta.
-“A porta não está ai.
Apenas...Venha até mim e olhe pra baixo com cuidado ok?”
E dotado de uma curiosidade imprescindível aliado ao amor e atração que a desconhecida lhe causava.
-“Quando foi isso?”
-“No começo dessa noite. A principio você parecia saber o que fez e estivemos aqui o tempo todo, mas ai desmaiou eagora acordou um tanto o quanto confuso... Eu achei que ia perde-lo”
Estava lá no chão da calçada estendido, uma massa amorfa de carne espalhada. O seu corpo, o seu próprio corpo, cercado pelos bombeiros que limpava aquela sujeira, curiosos e conhecidos em dolorosos gritos desesperados.
Já não existia mas assistia a euforia lá embaixo completamente impotente.
-“O que aconteceu?
Se lembrou de estar tarde da noite no escritório.
-“Você tinha um encontro comigo. Precisava comparecer.”
Rabiscava versos num papel. Olhou algo na sua mesa, os olhos brilharam.
Tomou um comprimido, só pra ter coragem..
-“Eu ainda não entendo.”
Guardou o papel num maço de outros papeis, amarrou tudo num bolo, colocou na gaveta. Levantou e caminhou pra janela.
-“Por favor, veja em seu bolso.”
O bolso de trás da calça, nada. Encontrou no bolso da camisa manchada de sangue, embolada e esquecida no banheiro: Uma carta, uma triste carta de despedida e uma foto em cujo verso continha um poema apaixonado e na imagem sorria ele próprio e ela. A mulher com ar de menina, uma mulher estranhamente cadavérica com o rosto ossudo emoldurado por uma sedosa e brilhante cascata negra. Ele, um homem com quase o dobro do tamanho da mulher a quem protegia num abraço, de sorriso largo e cabelo tão negro quanto o dela, curto desgrenhava-se sem jeito de uma maneira quase brincalhona..
Ele subiu os olhos da foto para a mulher ali parada a sua frente.
-“Você...Você!!!Ela.. Minha... Porque você veio me buscar? Porque você, justamente você é a minha morte?”
-“Eu nunca o deixei, Eu sempre quis ser esquecida e guarda-lo em segredo, mas sempre desejei toca-lo mais uma vez, nunca pude me desfazer dos beijos ternos e da profundidade dos teus olhos. Eu ainda quero estar contigo, eu não posso deixa-lo...”
-“Porque eu não me lembro de ti?”
-“Porque o esquecimento é o meu castigo por não querer deixa-lo.”
-“ Todos aqueles anos, todos esses anos comigo...E agora, mesmo que eu não me lembre de ti, mesmo que eu não vislumbre a tua lembrança estética ou palpável... Eu conheço o amor que foi a minha perdição e o amor que tirou de mim a única companheira, a única presença capaz de me acalmar o espírito... Todos esses anos, a mulher que eu amei, e quem eu menti, de quem eu fugi...
Fique comigo só mais essa noite, mesmo que eu não possa lembrar, mesmo que eu não mereça, mesmo que eu não possa tocar, mesmo que seja etéreo, não vá agora...” – Aos prantos e com dificuldade, chorava o homem ajoelhado em desespero à seus pés.
-“A noite é eterna aqui. Nós apenas atravessamos o espaço-tempo com aquilo que futilmente nos distrai. Nós guiamos o curso do pesadelo. No esquecimento à presenciar de forma tão impotente a autodestruição de um ser amado, nutrindo o desejo desesperado de tira-lo daquele pesadelo ou sendo confundido pelo esquecimento e uma estranha...Nós guiamos o pesadelo. É o nosso castigo, a nossa condenação.”
-“Se você é um castigo, não importa mais, seja o meu castigo, você é tudo que eu sei... Apenas fique comigo agora, se não fores de luz, sejas apenas meu anjo negro”
-“Porque você acredita em mim? Isso não pode acontecer, não está nos planos.”
-“Não me lembro, é verdade. Mas posso ver os teus olhos e a paixão assustadora que tem neles.Eu não me importo com planos. Você é o meu plano, que sejamos julgados e condenados e soframos mas se estivermos juntos, vai estar tudo bem.”
- Não mais oferecendo resistência à sua condenação como mortal, abraçou fortemente a esposa e não mais a soltou. Ela o olhava com os olhos negros brilhantes cheios de emoção e finalmente alívio.
-“Sabe, esse vestido me incomoda, sabia?”- Sussurrou-lhe, enquanto enchia-lhe a cabeça de beijos e carícias.
-“Sim eu sempre soube, eu o usei no meu enterro meu amor...”-Segredou-lhe ela.
E abraçados ali, ficavam cada vez mais leves, cada vez mais entregues ao esquecimento da eternidade e aos prazeres dos sonhos que juntas aquelas almas formaram, voltando à integrar como uma o mesmo Universo.
-“Porque o esquecimento é o meu castigo por não querer deixa-lo.”
ResponderExcluirO texto é magnifico, mas essa frase é espetacular