Autoria de Mariane Dorateotto.
“Era uma noite adocicada e a névoa se misturava à fumaça daquele estranho local que se aprofundava abaixo do nível da Terra. Desço vagarosamente degrau por degrau quando me deparo com aquela figura ali parada, de pele pálida e lábios vivos que tragavam tranquilamente um cigarro.
Vou até no bar, escolho um bom vinho, apenas uma taça. Observo ao redor, as pessoas riem e aqueles movimentos descoordenados faz com que pareçam representar a um só sentimento em uníssono. O chão é preto, e o teto e as paredes. A escuridão se adorna com veludo vermelho, castiçais dourados se emaranham em ramos pelas paredes assim como rosas que pontuam a decoração.
Recostado abaixo de um desses castiçais, o vejo pela segunda vez na noite. Ele, que me encara de maneira tão calorosa que aqueceria até mesmo a fria morte. Minhas pernas bambas. Arrumo o vestido abaixo do espartilho, tento esconder as mãos trêmulas. Ele ajeita uma mecha do cabelo que em sua claridade quase se confunde ao rosto magro e pálido e sorri, seduz. Eu sei o que ele quer. Eu tenho o que ele quer.
Dou um último gole na minha taça, acaricio sua borda, me levanto. As costas nuas, um leve movimento e um sutil convite para que ele venha comigo. Subo para o segundo andar, ele me segue.
O segundo andar deveria ficar pouco acima do nível da terra lá fora, é o que da pra se dizer pelos meus cálculos e a única fumaça vem da névoa que invade o espaço através das janelas barrocas adornadas com o mais belo do rococó, por onde entra também a luz azulada do luar, única iluminação presente no local.
Os detalhes e pensamentos me extasiavam tanto que quase não percebi quando a mão dele tocou meu braço, descendo com as pontas dos dedos até unir sua mão na minha. Trocamos algumas palavras,os olhos são ainda mais belos assim de perto. A íris negra e tão viva contrasta tão bem com os ossos bem marcados. O cabelo claro lhe cai minuciosamente arrumado pelos ombros dando aquela criatura um ar místico. Sorrisos.
Puxa-me pela cintura. Ah! Deus, esse perfume. Cola seus lábios nos meus. Ele sabe o que quer, desmorono. A mão firme desce até minha coxa. Decidido como as gárgulas que protegem sua morada Já não ouço a música, já não presto atenção, esqueço quem sou. Oh, quão doce a carne amarga pode vir a ser. Venha comigo, querido, vamos sair daqui antes que isso se torne incontrolável.
Ele vem atrás de mim sem largar minha mão se quer por um segundo. Estamos indo rápido. Um beco escuro, um lugar abandonado, qualquer coisa serve... Mesmo um canto afastado no bosque que nos cerca. O Bosque...
As árvores se tornam mais próximas e cheias. Diminuímos o ritmo, ele me abraça forte, não sinto medo algum da solidão que nos envolve, jovens e belos. Brincamos, sorrimos e bailamos entre as árvores, celebremos a vida! Ele me abraça contra uma árvore, me beija, me aperta e se entrega a mim. Arranho suas costas por baixo da camisa, tiro o espartilho enquanto ele abre meu vestido, seu sobre tudo vai ao chão. Ele baixa a alça esquerda do meu vestido e contempla.
Meu seio branco que reflete o azul da lua.
O peito aberto, o coração estático, exposto. Minha pele ganha um tom cada vez mais antigo, minha carne apodrecida cola aos ossos. Atrofio por inteira. Meus olhos se retraem para as órbitas. Oh Deus, os olhos não... Por favor, deixe-me ter ao menos esse traço de humanidade! Ao fim, estou novamente em minha degradante e arcaica forma original, tão repugnante que me escondo ao máximo por trás das sombras e dos cabelos velhos e brancos que me vão até os pés.
O rapaz olha o terrível espetáculo em choque demais pra fugir.
Não quero machuca-lo assim meu amor!
“Eu sou a tua morte
E lhe quero bem
Esqueça o mundo”
Sussurro-lhe ao ouvido. E com as órbitas vazias expelindo desconsoladamente aquela substância escura (E acredite, eu realmente gostaria de ter ficado com os olhos e poder chorar como os belos anjos humanos) e um verme corroendo-me o coração, beijo a boca sensual e retiro aquilo de vida que o espanto ainda não levara. Aperto seu doce corpo inerte contra o meu, não quero deixar tão bela escultura voltar ao pó. Não quero.
Nota adicional: Aquele corpo continha uma alma de pássaro, que se foi voando assim logo que retirei sua vida, separando matéria e substância. Alma tão bela e atraente quanto o corpo ao qual terror e despreparo para a minha visão cara a cara, encolheu a torna-la quase invisível a olho nu.”
Torno a dobrar aquelas folhas sépia e guardo no buraco em meu peito. Esse encontro ocorreu há muitos e muitos anos e nunca mais tornei a ver invólucro tão bem esculpido no mármore da carne, nem encontrei aquela alma doce e tão singular em qualquer canto de nenhum dos continentes ou mares da Terra. Mas eu a Morte, nunca esquecerei aquele breve encontro e o verme que começou a corroer-me aquela noite, inda suga a energia dos meus ossos sobrenaturais.
Noite após noite, a Morte também ama.
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